sexta-feira, 22 de agosto de 2014

não muito diferente da árvore

Logano, nos Apeninos, 21 de outubro de 1786, à noite

[...] enfim aqui estou numa estalagem miserável, com um capitão do exército do Papa, pertencente à guarnição de Bolonha, e que se dirige à Perúgia, sua cidade natal, para visitar a família. Metido com esse oficial numa pequena carruagem, disse-lhe, unicamente para dizer alguma coisa, que, como alemão, estava habituado a conviver com militares e me sentia feliz por ter companheiro de viagem um oficial do Papa.

- O senhor pode gostar da carreira militar - respondeu-me. - Quanto a mim, ainda que nosso serviço seja muito fácil, gostaria de me ver livre deste uniforme e fazer prosperar os modestos haveres de meu pai, mas sou o filho mais moço e tenho de me resignar a esta profissão.


***


Perúgia, 25 de outubro, à noite

[...]

Despedi-me, hoje à tarde, do meu capitão; é um digno representante dos seus compatriotas. Vou dar alguns extratos das nossas conversas: eles poderão permitir que se conheça o seu caráter. Vendo-me sempre silencioso e pensativo afirmou-me que não deveria pensar porque pensar envelhece; que, afinal, preocupando-nos com uma só coisa nos arriscamos a ficar loucos, e por conseqüência devemos sempre ter mil coisas na cabeça ao mesmo tempo. Em outra ocasião, confessou-me que havia percebido ser eu protestante, e me pediu licença para dirigir-me algumas perguntas sobre a minha religião, da qual ouvira dizer coisas bem surpreendentes.

- É verdade - indagou - que os sacerdotes da religião dos senhores permitem que se viva intimamente com uma mulher nova e bonita sem ser casado com ela?
- Nossos sacerdotes - respondi - são homens sábios e prudentes, que não se preocupam com semelhantes bagatelas, mas se lhes pedíssemos permissão para tais coisas, eles recusariam.
- Então ninguém é obrigado a pedir autorização? Felizes mortais que são os senhores!

E depois de se haver espalhado em invectivas contra os padres romanos, voltou ao interrogatório:
- E a confissão, como se arranja isto na sua religião? Nossos sacerdotes nos afirmam que os homens que não têm a felicidade de ser cristãos sentem necessidade de se confessarem, porém, muito obstinados para reconhecer o poder da Igreja, esses incréus se confessam à primeira árvore que encontram. Os protestantes fazem assim também?

Depois de haver escutado tudo que lhe disse para lhe dar uma idéia justa da nossa confissão, o oficial me assegurou que ela não diferia muito da que se fazia a uma árvore. Da confissão passou a um assunto mais importante, isto é, o casamento entre irmãos, que lhe haviam garantido ser muito comum entre os protestantes. Meus argumentos para o fazer encarar o protestantismo no seu verdadeiro aspecto muito pouco o impressionaram, e ele se pôs a me revelar um grande segredo que um padre muito fidedigno e muito veraz havia lhe confiado.

- Frederico, o Grande - disse-me - este grande herói que se cobriu de glórias e que o mundo julga herético, é um fervoroso católico. A prova é que ele nunca põe os pés num templo protestante, mas nos fundos do seu palácio há uma capela subterrânea onde ele assiste secretamente ao ofício divino, com o coração despedaçado pelo desespero de não poder confessar publicamente a sua fé. Porque os prussianos são bárbaros e hereges ferozes que o assassinariam imediatamente se o soubessem católico. Convencido de que esse assassinato seria mais nocivo do que útil à Igreja, o Santo Padre permitiu ao grande rei praticar sua religião em sigilo e protegê-lo nos seus Estados tanto quanto possa fazê-lo sem se comprometer.

Limitei-me a responder ao capitão que, desde que este fato constituiria um segredo entre o Papa e o rei da Prússia, era tão difícil afirmá-lo quanto negá-lo.


(Goethe, Viagem à Itália)

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