sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Cantar lontano

6 de outubro, à noite

[...]

Encomendei para esta noite o famoso concerto dos gondoleiros que cantam ao seu modo os versos de Tasso e de Ariosto. Digo encomendei esse canto porque ele passa de uma velha expressão que se perde nos ecos do passado, um espectro que se faz pagar caro pelos estrangeiros curiosos de vê-lo.

Favorecido por um soberbo luar, subi a uma gôndola, com dois cantores, um dos quais colocou-se na proa e o outro na popa, e começou, então, o concerto. As duas vozes não cantam nunca simultaneamente: um diz um verso, o outro responde logo com o verso seguinte, e isto se prolonga assim durante horas. A melodia, que fica entre o coral e o recitativo, segue sempre a mesma cadência sem estar submetida a uma medida regular, e os sons também não variam. Somente a declamação dá arte e vida a esse canto singular, porque o põe em harmonia com o sentido de cada verso.

Procurei em vão explicar-me a origem desse canto, mas é certo que esta maneira de moldurar versos decorados tem um grande encanto para um homem de gostos moderados. Uma variante desse divertimento, de que outrora os gondoleiros tinham o privilégio, tornou-se popular e de uso quotidiano, que é o seguinte:

Um homem do povo, sentado à margem de um canal, entoa, com toda a força dos seus pulmões, versos de Tasso. Os sons deslizam sobre a superfície da água e chegam ao ouvido de outro homem do povo, que responde imediatamente com os versos seguintes, aos quais o primeiro responde por sua vez, e os dois continuam assim muitas vezes por uma boa parte da noite. Isto encanta os que ouvem sem fatigar os que cantam.

Para me dar uma idéia dessa música nacional, meus gondoleiros fizeram-me desembarcar na Giudecca, depois colocaram-se ao longo do canal a uma grande distância um do outro, e começaram uma passagem de Tasso, enquanto eu passeava no espaço entre os pontos onde se encontravam os dois, afastando-me sempre do que ia começar a cantar para me aproximar do que terminara. Escutando assim essas duas vozes que não eram mais do que o eco uma da outra, e através do andamento do poema, elas me davam a impressão de uma lamentação sem motivo real mas que comove, emociona e arranca lágrimas: eu acabava de compreender o alcance e o espírito do canto veneziano.

Informaram-me que as mulheres do Lido, de Palestrina, de Malamocco, quando seus maridos partem para a pesca, vêm à noite para a praia e cantam até que suas vozes cheguem aos seus companheiros, que se apressam em responder-lhes e anunciar-lhes seu regresso. Não é um costume encantador? Certo, vozes que lutam contra as ondas não poderiam ser agradáveis de ouvir de perto, porém elas dão um acento de realidade a esse canto, dão vida a essa melodia, que até agora se tem debalde procurado compreender. Esta noite eu desvendei o segredo. Em Veneza, o homem lança sua voz possante numa vaga longínqua, porque se sente isolado e porque espera que outra voz escute a sua e lhe responda, e então ele já não estará tão só.


(Goethe, Viagem à Itália, e a inevitabilidade de se perguntar se estaria, talvez, nessa tradição popular, uma das origens ou inspirações para o policoral veneziano.)

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